Golpe, bradam aos céus, os seguidores da presidente Dilma. Falam em respeito ao resultado numérico das urnas para se posicionarem contra o processo de impeachment do mandato presidencial. Mas apenas os números que saíram das urnas legitimam o exercício de um mandato? Ou este número só é legítimo, real, se no mandato, o governante cumprir aquilo que prometeu e que o levaram a alcançar a vitória como resultado final. É este o tema do artigo abaixo, assinado pelo advogado e professor, Tiago Cardoso Penna.
Legitimidade, Democracia e o necessário respeito à vontade das Urnas
As vozes contrárias ao processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff costumam argumentar com a necessidade, em uma democracia, do respeito à vontade das urnas. É uma daquelas frases contra as quais é difícil se opor sem parecer atacar um valor fundamental e inquestionável.
A verdadeira questão, todavia, não me parece ser o respeito à vontade das urnas devido ou não, mas antes disso, identificar as vontades que elas manifestam.
Não é fácil conceituar democracia, e os trabalhos de autores como Dahl, Hirst, Kelsen, Goyard-Fabre, Bobbio, Sartori e Canotilho não deixam dúvidas quanto ao tamanho do desafio. A dificuldade em afirmar o que democracia é, por outro lado, ajuda a mostrar com clareza o quão simplista, para não dizer simplória, é a pretensão de reduzir o instituto ao mero resultado numérico das eleições. Não raramente a análise apenas do número de votos obtidos pelos vencedores pode esconder discussões mais profundas.
O Professor inglês Paul Hirst adverte que “a vitória eleitoral permite silenciar outras exigências ligadas à disputa política, à pressão pública e à obrigação de prestar contas; permite ao governo ignorar contestações à sua autoridade, as quais podem de fato ser necessárias para que ele se torne mais eficiente e fiscalizável”
O Mestre Italiano Norberto Bobbio destaca outro ponto, afirmando que “para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra”
O português J. J. Canotilho, ciente também da insuficiência do procedimento eleitoral de seleção dos governantes ressalta que “tão ou mais importantes que os procedimentos eleitorais legitimadores são os procedimentos constitucionais deslegitimadores tendentes a possibilitar o afastamento dos titulares de cargos políticos (impeachment, recall, responsabilidade política, destituição, monção de censura).”
É possível afirmar que as diferentes abordagens trazidas estão presentes de um modo ou de outro na nossa Constituição, seja na medida em que estabelece procedimentos como os citados por Canotilho, seja quando estabelece mecanismos de proteção às minorias políticas ou quando prescreve regras para que o eleitor possa, livremente, optar de modo efetivo ao lançar seu voto.
Se, contudo, evoluímos consideravelmente no que diz respeito às fraudes eleitorais e, quero crer, também no combate à compra de votos, não é possível ignorar que ainda há muito o que se fazer para que a escolha efetiva e livre entre alternativas reais defendida por Bobbio tenha plena aplicação.
A obrigatoriedade de filiação a algum partido, a necessidade de existência de um programa partidário e, mais recentemente, de um plano de governo registrado, mostram que nossa Carta Política caminha no sentido de entender que democracia não significa apenas escolher quem irá governar, mas sim como seremos governados, utilizando a definição lapidar do jurista carioca Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
O necessário respeito à vontade das urnas, portanto, deve ser aferido não apenas pela garantia de manutenção no governo do candidato que recebeu maior número de votos, senão não seriam necessários os mecanismos deslegitimadores mencionados por Canotilho.
Só estaremos mais próximos de uma democracia efetiva quando os eleitos estejam mais vinculados às alternativas reais por eles colocadas e sufragadas pelos eleitores. É o que a OAB, CNI e CNT e outras entidades defendiam ao afirmar que a Presidente Dilma não tem legitimidade para propor medidas que criem ou aumentem impostos, por violarem claramente o programa por ela apresentado na campanha.
É realmente viável entender que a vontade das urnas está sendo respeitada quando aquele que recebeu maior número de votos é mantido no poder, não importando que a vaca tussa durante todo o tempo do mandato, apenas para recordar uma famosa frase da nossa Presidente durante o período eleitoral? E, nesse quadro, o uso das ferramentas mencionadas pelo Professor de Coimbra – amplamente apresentado ao público brasileiro como um dos maiores constitucionalistas do mundo quando entregou ao ex-Presidente Lula o título de doutor honoris causa – seria uma atitude antidemocrática ou, ao contrário, uma forma de garantir sua efetividade?
É urgente que mecanismos de controle das propostas eleitorais e da vinculação dos eleitos a elas sejam criados ou aperfeiçoados no Brasil, só assim teremos governos que, talvez mais carregados de legitimidade, possam se dar ao luxo de serem menos fisiológicos. E talvez assim possamos ter eleições vencidas por candidatos e propostas, e não pelo marketing eficiente.