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Cotidiano

Paulo César de Oliveira
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Renata Araujo

Todos os movimentos agora parecem moldados e predestinados a cumprirem função. Os olhos fixos na luz do dia, a própria  tela do celular, nem bem abrimos os olhos — e nossos dedos já rolam o visor para cima e para baixo. Esquecemos de  deliciarmos com o despertar, com o alongar dos músculos, ao som de uma boa música, cheiro de café passado.

É plausível deixar-nos levar pelo cotidiano, sem nenhuma indagação, pelo simples fato de ser rotina? O que seria, de fato, cotidiano para cada um de nós?

Na correria do dia a dia, acabamos por  massificar-nos, ou seja, tornamo-nos uma massa, um grupo direcionado que caminha em bando, seguindo um ritmo imposto por demandas externas e internas, um grande Outro que nos fala fora e nos fala dentro da gente. Nosso tempo é pautado por cronômetros, por prazos e por uma sequência de tarefas que muitas vezes nem lembramos se escolhemos de fato fazer ou se nos foram impostas. Essa massificação é uma imposição silenciosa, uma rotina que se infiltra em nossa essência, transformando nossa existência em algo padronizado, previsível, quase mecânico.

O intervalo, o tempo para o descanso, a espera, o silêncio — tudo isso foi banido de nossas vidas. O que restou foi uma incessante ocupação do tempo; uma busca constante por estar sempre ativo, sempre produtivo, sempre presente. A sensação de que parar, refletir ou sentir tiraria o tempo de nossa produtividade. O que é justamente ao contrário.

Abrimos os olhos, ligamos a tela do celular, rolamos a barra, olhamos WhatsApp, mensagens enviadas de madrugada, apelos nas mídias dizendo o que devemos fazer para ter uma pele melhor, um corpo mais bonito, consumir notícias ou entretenimento todo o tempo.Somos inundados por uma rotina de demandas, uma exaustão que parece nunca ter fim. Essa pressão para atender a todas elas, para estarmos sempre disponíveis, acaba por nos consumir e nos esgotar — como uma maratona que nunca termina. Precisamos, mais do que nunca, do vazio e da espera. Precisamos nos colocar não a essas nossas vontades desenfreadas. O não nos organiza.

O intervalo, o vazio, a espera — esses espaços que  deixamos de lado — são essenciais para nossa própria saúde mental. Banimos de nossas vidas aquilo que nos ajuda a criar, a filosofar, um imaginário além da rotina. Sem o vazio de uma flauta, ela não ressoa, não emite som. Penso assim, como se fôssemos flautas, também cheios de buracos, capazes de ecoar. 

Se não deixarmos esses vazios livres, se não permitirmos o silêncio, a pausa, a espera, perderemos a chance de ouvir nossa própria voz. É justamente no intervalo que o ressoar acontece, que a criação se manifesta. O ritmo frenético, a imposição de demandas externas, muitas vezes  impede de nos ouvirmos.

E me questiono: o que é o cotidiano para cada um de nós? Até que ponto nos deixamos ser massa, seguir uma rotina imposta, sem questionamentos? Damos realmente espaço ao novo ou estamos presos a um dia a dia que nos suga a liberdade de ser, de pensar, de sentir de modo autêntico? Temos consciência de como vivemos nosso cotidiano?

Hoje, resolvi parar. Decidir abrir espaço para a criação, para o silêncio necessário à reflexão. Fui à livraria, comprei livros que irão ampliar meu conhecimento, que desafiam a pensar diferente, a questionar minha rotina, meu modo de estar na vida. Abrir uma janela em mim, não é fácil, pois exige coragem para desconstruir uma rotina massificada a que tanto emergimos.

Sentada neste espaço de lanche perto do meu consultório, percebi que a escrita exige tempo de intervalo, tempo de pausa, para que o texto venha, ressoe dentro de mim e eu possa ouvi-lo,  colocar em palavras, mesmo que falte-me algumas, e distribuir mundo afora. 

Renata Araújo – Psicanalista, escritora e cantora.

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