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Entre o jaleco e o abismo: o fardo invisível dos que cuidam

Paulo César de Oliveira
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Há uma solidão particular reservada aos médicos — uma espécie de clarão frio que acompanha quem vigia a fronteira entre o que permanece e o que desaba. Eles caminham por corredores que não cessam nunca, onde cada porta pode guardar um renascimento ou um silêncio definitivo. E o país, distraído em seus ruídos, trata essa travessia como se fosse rotina. Não é. Nunca foi. Por trás do jaleco, que tantos imaginam um escudo mítico, vive alguém que conta as próprias cicatrizes como quem recita uma prece. Há dias em que o fôlego falha antes da voz, e mesmo assim é preciso anunciar o irreparável: dizer a uma mãe que seu mundo acabou, confirmar a um velho que o tempo decidiu recolher o que ainda restava. São frases que não se escrevem em manuais ou prontuários; ficam guardadas em regiões que não aparecem em tomografias. A formação é outro rito de passagem: anos engolidos por livros que pesam como pedras antigas, madrugadas que mastigam a juventude com lentidão impiedosa. A medicina cobra uma renúncia sem trombetas — exige que a vida pessoal seja adiada para um futuro hipotético que quase nunca chega. Quem segue adiante o faz movido por algo que não sabe nomear: talvez fé, talvez teimosia, certamente empatia, talvez o impulso primitivo de arrancar mais um minuto da morte. E quando, enfim, chega ao mundo real, encontra um tablado precário onde tudo é escassez: de tempo, de recursos, de compreensão. O país pede heroísmo cotidiano, mas oferece salários aviltantes, jornadas que dobram sobre si mesmas e ambientes que sangram esperança. Ainda assim, espera-se do médico uma paciência litúrgica, um equilíbrio de trapezista (sem rede de proteção!), como se estivesse proibido de ser humano. Se cansa, acusam-no. Se hesita, julgam-no. Se erra, crucificam-no sem direito a defesa. No intimismo dos plantões, ele aprende a conviver com fantasmas: os que salvou por milímetros e os que perdeu por centímetros. A cada morte, algo nele se parte — e, no entanto, no turno seguinte, precisa estar lá de novo, como se nada tivesse ruído. E de novo. E de novo, novamente. Não há receita para isso. Há apenas o peso e o silêncio. E ambos o acompanham até em casa, invisíveis como poeira noturna. O país também cultiva uma desconfiança ritualista. Os deslizes de poucos viram lâminas sobre muitos. O médico vive em estado permanente de defesa, justificando o que faz, o que não faz, o que não pode fazer. É um julgamento sem trégua, alimentado pela fantasia de que ele deveria ser onipotente — e castigado quando se deixa mostrar que não é. Ainda assim, ele segue. Não por glória ou gratidão, que são raras como chuvas no deserto. Mas porque há algo de indomável em quem escolheu segurar a vida com as próprias mãos, mesmo sabendo que ela, às vezes, escapa. Há grandeza nessa persistência silenciosa, quase anônima, que não pede testemunhas. No fim, o médico não é herói nem mártir. É apenas um ser humano tentando não perder a própria humanidade enquanto trabalha em um país cujo sistema parece empenhado em arrancá-la, dia após dia. É um guardião cansado que, apesar das fissuras, continua de pé diante do abismo. E há uma beleza trágica nisso: quando tudo vacila, ele permanece. Mesmo ferido, mesmo só. Permanece.Parte superior do formulário

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