O médico Sérgio Almeida de Oliveira (foto) trocou Belo Horizonte por São Paulo há quase 50 anos, onde se tornou um dos cardiologistas mais conceituados do país. Mas ele sempre manteve os amigos e as suas raízes próximas. Ele começou como assistente do médico Euryclides Zerbini, o quinto cirurgião do mundo e o primeiro da América Latina e do Brasil a realizar um transplante de coração. Uma referência que ajudou a moldá-lo como um dos profissionais mais respeitados do país. Em São Paulo, Sérgio Almeida de Oliveira montou uma estrutura especial para receber os pacientes mineiros. Sua mulher, Fátima, formada em psicologia, ajudou a acolher os pacientes mineiros, que ainda lotam o seu consultório. Um fã do SUS, para ele, o Sistema Único de Saúde mostra toda a sua importância nesse momento difícil no país.
Como está o coração do brasileiro com tudo isso que ele está passando hoje, com essa pandemia, com tantas incertezas?
O coração do brasileiro está mostrando que é um coração forte para aguentar tanta crise, tantos problemas juntos. Juntou com a crise da pandemia na crise social que é enorme e tudo mais. Tem havido uma grande dificuldade, porque os hospitais hoje praticamente lotados todos os dias com pacientes com Covid. Aqui todos os hospitais estão assim nessa posição. A nossa própria cirurgia cardíaca tem que ficar restrita aos casos que têm mais urgência e a alguns que já estavam internados, porque há uma dificuldade enorme em se ter espaço. Não é só o espaço da operação. As UTIs estão lotadas, uma cirurgia grande exige UTI às vezes prolongada. Felizmente estamos avançando, não na velocidade que a gente gostaria.
Diante dessa situação, casos podem ser agravados? Pessoas que deveriam estar em tratamento podem ser prejudicadas?
Sou um cirurgião que trabalha em uma área muito mais restrita. É o médico clínico que está enfrentando os problemas lá na origem. Nós trabalhamos muito com parceiros de referência. Nós não temos a noção exata da extensão das dificuldades, mas é sabidamente uma situação muito difícil, muito crítica. Até porque, há uma tendência a não fazer uma indicação cirúrgica, uma internação, uma cirurgia mesmo eletiva. Numa situação dessas, o hospital acaba sendo local de potencialmente alto risco para os médicos e para os pacientes. O que eu vejo nessa situação toda, que felizmente, está tendo um desempenho fantástico, é a competência do SUS. Nós vemos outros países e aqui o SUS foi o grande responsável por essa movimentação toda. As pessoas chegam ao hospital, nem que tenha que ser internado em um hospital particular por conta do SUS, é uma força fantástica. Já sabemos disso há muito tempo, mas essa é uma demonstração da enorme importância no SUS e que infelizmente nem todos os governos consideram assim.
Países de primeiro mundo não tiveram essa capacidade de atendimento?
Muitos não tiveram. Isso é um aspecto importante, apesar de não ter o apoio total e ajuda do governo, nós conseguimos. O presidente faz uma campanha absolutamente contra o tratamento. Ele insiste em bobagens e nega a importância da prevenção, dos cuidados que se precisa ter, nos contatos sociais, no trabalho. Está ocorrendo um pequeno arrefecimento no número de mortos, mas ainda mantendo em um número bem elevado. O Brasil ficou recordista nessas complicações, com uma incidência muito alta, beirando 500 mil mortes. É um número assustador.
Alguns especialistas dizem que o novo normal será o das pessoas conseguirem viver até os 120 anos. Como ter uma vida saudável, um coração funcionando plenamente até os 120 anos?
Isso nós não sabemos ainda, mas deve ter alguns truques. Evidente que o progresso não para e uma das coisas importantes são as medidas de prevenção das doenças do coração, especificamente, e que nem sempre são observadas. São cuidados que as pessoas precisam e podem tomar, e que nem todo mundo dá a atenção devida. Pacientes que já foram atendidos pós um enfarto ou uma cirurgia do coração, também têm que estar conscientes de que, a partir daí, ele também é um colaborador. A doença tem a tendência a prosseguir, ela não é eliminada em definitivo ela precisa de colaboração. A postura do nosso presidente, que desaconselha uma atitude preventiva, isso é um absurdo total. A administração do país está em um caminho muito complicado. Não me lembro de ter ouvido falar de um paradoxo desses. Toda a população trabalhando, mudando seus hábitos, seus planos para colaborar e evitar o contágio e evitar a doença e as acumulações nos hospitais e, do outro lado, a cúpula do governo dizendo o contrário.
O senhor já passou por vários governos. Já tinha passado por uma situação como esta?
Não. Isso é esdruxulo, inacreditável. É uma insensibilidade total. A impressão que ele dá é a de que não tem respeito nenhum pela vida, nem a dele, nem a dos doutros, da família. É uma postura de total descrédito. É um absurdo.
A tecnologia ajuda nos casos de cirurgias mais complexas?
Ajuda. A cirurgia cresceu muito. A dificuldade para a execução plena é porque os gastos são muito elevados. Todo avanço tecnológico está presente, mas nem sempre em função das seguradoras que não cobrem muita coisa e dos pacientes que não tem recursos. Mas houve um avanço muito grande. Superada a crise da pandemia, outros avanços poderão ser incrementados, desde que os recursos sejam dirigidos para outras finalidades, que não seja tratar de uma pandemia. A cirurgia cardíaca no Brasil está muito beneficiada pelo SUS. Se nós não tivéssemos o SUS, a cirurgia estaria restrita a seguradoras e às pessoas que têm condições de pagar um seguro muito caro. Assim mesmo, vencendo as dificuldades, porque as seguradoras, também impõe muitas dificuldades. Mas o avanço é incrível. Hoje, por exemplo, a colocação de válvulas, percutâneas para paciente idoso sobretudo, está muito avançado. Nos últimos anos isso foi aperfeiçoado muito rápido. Mas isso tem um custo muito elevado. Para um paciente que não tem recursos muitas vezes é necessário recorrer a uma petição judicial, a uma licença para conseguir vencer as barreiras. Esses procedimentos são muito caros. Aprendemos ao longo do tempo, que com a maior utilização, os recursos vão aparecendo, o custo também vai caindo, além dos procedimentos, que são cada vez mais simplificados.
A tendência, tirando o momento atual, é o que que saúde no Brasil tende a ter mais recursos?
Hoje, todo mundo tem acesso ao SUS e infelizmente, os hospitais não são suficientes para atender a todos que têm recursos. Os hospitais de primeira categoria têm custos elevados, mas o que aprendemos é que a cirurgia no Brasil avançou muito e o SUS teve muita importância nisso, junto com as seguradoras, que são mais difíceis.
A cirurgia cardíaca no Brasil e uma referência no mundo?
Nós conseguimos hoje, na América Latina, chegar a um patamar muito elevado de transplantes cardíacos, que é um procedimento caro, que é restrito a hospitais universitários, que se dedicam a ter um programa estabelecido. Mas os números cresceram muito e se olharmos a vizinhança, o Brasil está muito à frente, nas cirurgias cardíacas, não só o transplante, como a cirurgia de válvula, as de doenças congênitas. Nós temos um volume de tratamento muito grande e crescente. Esse é um aspecto importante.
Quais são os principais problemas cardíacos dos brasileiros?
Em termos de cirurgia, as cirurgias congênitas são as mesmas, só que a maioria deles hoje são tratadas com cura total, sem muita dificuldade e as outra são as doenças adquiridas. Uma que tem uma evolução importante é a Doença de Chagas. Quando me formei, as pessoas diziam que tínhamos 30 milhões de pessoas contaminadas pelo barbeiro. Hoje esse número caiu consideravelmente e melhorou também o tratamento da doença. As doenças reumáticas, que teriam desaparecido, mas ainda temos uma população muito pobre, sem acesso nenhum a recursos e que ainda podem ser fonte geradora de doença reumática para o coração, que já deveria ter sido eliminada. Em muitos países não existe mais sequelas do reumatismo infeccioso. Ficou um grande problema de doenças ligadas a aterosclerose, a hipertensão, que ainda são muito elevadas, mas há recurso para prevenção do enfarto na fase aguda, para correção e sequelas de um enfarto.
Depois de um general, temos um ministro da área no Ministério da Saúde, mas sem autonomia. Como o senhor avalia essa situação?
Hoje temos um cardiologista, um médico de grande prestígio, de grande competência, que assumiu o Ministério da Saúde e está sofrendo muitas dificuldades. Assisti o seu depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, vemos que é uma pessoa série e competente, que está fazendo um enorme esforço, mas encontra restrições, dificuldades dentro do próprio sistema ao qual ele pertence e é o chefe. Me deu pena vê-lo constrangido, como se fosse o responsável. Mas as limitações que estão existindo são criadas pelo próprio governo. Faço votos que ele consiga superar as restrições impostas e consigamos ter um ministério trabalhando como o promotor da assistência e não como uma peça de menor importância. O Ministério da Saúde é vital para essa pandemia e isso ficou provado no início da pandemia, quando havia uma cobertura social mais intensa. Vamos torcer para que o ministro Marcelo Queiroga consiga trazer inovações nessa administração do SUS. (Foto reprodução internet)