O menino desceu o morro do Acaba Mundo e, numa rua do bairro Lourdes, a conheceu. Ela com 11 anos, ele com 10. Ela morava numa casa grande, ele, num barracão. Crianças, não percebiam a distância entre os seus mundos.
Na casa dela, um constante entra e sai de jornalistas, intelectuais, escritores, como o pai dela, e políticos, como o tio.
Nos dias de festa, as pessoas iam entrando, absorvendo a energia boa daquele ambiente fascinante e prazeroso. Os três irmãos, junto aos primos, gostavam de registrar suas façanhas nesses ocasionais eventos, como no dia em que, escondidos atrás de uma cortina, com palitos nas mãos, cutucavam a cabeça de um convidado careca. O homem, sem entender, procurava a sua volta a mosca inconveniente.
Na sala, uma conversa animada, interrompida de repente por uma dúzia de tambores de leite vazios (vindos da fazenda) rolando escadaria abaixo. A mãe ficava nervosa, ameaçava pôr de castigo, enquanto o pai, divertido, ria dos filhos travessos e criativos. A menina também se divertia e, muitas vezes, junto aos irmãos mais velhos, participava das “arquitetações”.
Um dia, na fazenda, ela encheu uma lata com sapos pequenos que pegou no brejo. Levou-os para a cidade e soltou os bichos na sala de aula, para o divertimento dos colegas e a histeria da professora. A mãe foi chamada na escola, os irmãos vibraram com a ideia, e o pai, como era de se esperar, achou a filha genial. Nada como o inusitado no meio de uma aula maçante. E ela, com a lata de sapinhos recolhidos às pressas, deixou-os no jardim.
E foi numa das festas na casa da família, com um jantar para seletos convidados, que a menina chamou o menino e seus amigos do Acaba Mundo para um mundo, que até então desconheciam. Foram muito bem servidos e dos últimos a sair. Felizes, agradeceram pela festa e pelo saquinho de doces que receberam ao se despedirem. “Levem para suas mães!”, disse a mãe da menina aos novos amigos da filha. Naquela casa, intensificar diferenças sociais era proibido. A mãe da menina, apesar de calada e rígida quando necessário, era uma alma boa, sempre disposta a acolher e ajudar os mais necessitados. Por isso, nunca questionou a presença em sua casa dos garotos de shorts rasgados e blusas desbotadas, com seus chinelos de borracha e olhos muito vivos nos rostos magros.
Véspera de Natal. O menino toca a campainha, junto a um dos irmãos de uma família numerosa, cuja mãe, catadora de papel, sozinha, dava conta do recado. Chamou pela amiga. Em suas mãos, um saco de areia lavada.
– Minha mãe mandou de Natal pra você. Disse que é para arear as panelas…
Encantada, a menina pega o saquinho de areia e guarda-o dentro de casa. Menino e menina se despedem, prometendo se encontrarem depois das festividades. As dele, provavelmente passadas em branco, sem peru assado e sem presentes. Amontoado num barraco cheio de gente, sai pelos becos para ver, do alto, os foguetes na cidade.
O Ano-Novo chegou, as aulas recomeçaram. A menina estranha o sumiço do amigo, quem sabe os estudos o prenderam na escola?
Até que, um dia, uma senhora muito humilde tocou a campainha de sua casa. Ao lado dela, uma penca de filhos. O olhar é triste, perdido na complexidade de sua situação. Chama pela menina e por sua mãe. Quer lhes contar do ocorrido.
O menino havia falecido, sofria de epilepsia, teve uma crise e caiu no córrego. Morreu afogado. Ela queria lhes dizer isso e agradecer pelos bons momentos que o filho passou ali. Agradecer pelo saquinho de doces e perguntar pelo saco de areia, se haviam recebido direitinho.
E depois, com os olhos marejados, a mãe do menino partiu, deixando na menina um enorme e indescritível vazio.
A menina era minha mãe, que, na véspera de Natal, lembra-se do menino vindo de um passado distante. Fala do presente mais marcante que já ganhou na vida. Conta que aquele saco de areia, em vez de arear panelas, serviu como piso para o presépio de minha avó. Desde então, os presépios de sua casa têm o chão ornado por areias limpas.
*Laura Medioli é escritora e diretora da Sempre Editora