Os estragos causados pela pandemia do coronavirus- hoje o país é um dos principais focos de contaminação no mundo- vão deixar um saldo difícil de ser contornado. As milhares de mortes, o fantasma do desemprego, o fechamento de empresas, são alguns dos problemas que o governo terá que enfrentar. O pós pandemia, no entanto, mostra um futuro tão incerto quanto o momento que estamos vivendo. O ex-ministro Paulo Paiva (foto) alerta para os problemas que o governo terá que enfrentar e avisa que nós sabemos muito pouco sobre as crises sanitária e econômica, e nunca passamos por uma situação como esta.
Na live do Conexão Empresarial, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso falou da sua preocupação com o que pode vir a acontecer pós pandemia do coronavirus. Essa questão do emprego pode desencadear uma outra crise no país?
Nós estamos vivendo uma situação que tem dois aspectos que precisam ser levados em consideração. O primeiro deles é que nós estamos vivendo uma situação ímpar, que nós não conhecemos. Ninguém da nossa geração viveu uma situação de pandemia. Nós não conhecemos e mesmo os especialistas não descobriram uma vacina, não têm um medicamento. O que se tem a fazer é o que foi feito aqui no Brasil em 1919, há um século, que é o que se fazia quando tinha pandemias: evitar que o vírus se propague. Quando o problema foi com os ratos, nós matamos os ratos por causa da peste bubônica. Quando o problema foi com os morcegos, nós matamos os morcegos. Agora o problema é com gente e por isso temos que isolar as pessoas. Nós não sabemos o que fazer porque não se trata de uma coisa simples, porque isso tem efeitos colaterais. Afeta a oferta da economia, a demanda, como afeta o estado psicológico das pessoas. Nós estamos em um mundo que nós não conhecemos. Do ponto de vista da economia a crise que nós vivemos e que podemos responder a elas, elas foram diferentes desta que nós estamos tendo. Da última recessão que nós vivemos, em 2012, até agora, a cada ano o PIB crescia menos, crescia a 2,5% , a 3% depois caiu a zero, a menos 1%, menos 3% e menos 4% em 2016, quando começou a subir e a partir daí cresceu a 1%. Agora o que nós tivemos é como se fosse um trem que estava a 100km por hora e que de repente parou. Foi isso que aconteceu.
Com a pandemia a queda no PIB tende a ser significativa?
Nós estávamos crescendo a 1% ao ano, nos três últimos anos, e neste ano nós, provavelmente, na melhor das hipóteses, vamos cair 5%. Isso trará um baque que nós não sabemos como vamos lidar com ele. No caso do Brasil a situação é mais grave ainda porque temos um desequilíbrio fiscal. Nós estamos tentando ajustar as contas com a reforma da Previdência, estávamos tentando fazer uma reforma administrativa e de repente a situação piorou e ninguém sabe o que fazer. O que está sendo feito no caso da saúde é o possível, é fazer o que se está fazendo. Como nós entramos mais tarde nesse processo, que começou na China, depois Europa, Estados Unidos e agora aqui, tivemos a vantagem de poder fazer o que os outros estavam fazendo, o que é possível fazer, que é o isolamento, que não pode ser muito longo porque deixa as pessoas sem acesso à renda e ele, culturalmente é muito difícil. Nós vivemos em grupo e temos uma dificuldade muito grande em fazer esse isolamento. Em algumas regiões, nas comunidades e favelas, tem pessoas que não conseguem fazer o isolamento. São cinco pessoas vivendo em um espaço pequeno, não há como ficar o tempo todo lá dentro, as pessoas acabam se matando. É muito difícil. Por isso é difícil imaginar como será mais para frente, o que vai acontecer.
Onde buscar as respostas?
Temos que olhar as respostas à epidemia que os outros países estão tendo. Na saúde se tenta fazer com que as pessoas cumpram a quarentena para evitar a transmissão do vírus. O segundo, que é extremamente importante, é evitar um colapso no sistema de saúde. O sistema de saúde é como um sistema de seguro. Imagina, por exemplo, que cai um avião. A empresa vai lá, aciona o seguro. Mas imagine se em um dia cairem todos os aviões da empresa? Obviamente o seguro não tem como pagar. A mesma coisa acontece com o sistema de saúde, em qualquer local do mundo. Nós temos possivelmente, um dos mais complexos e mais abrangentes sistemas de saúde do mundo. Nós reclamamos, mas o sistema é um dos mais abrangentes. Mas não está preparado para uma pandemia na velocidade com que esta chegou. O isolamento visa também isso, que é reduzir a curva, a velocidade da contaminação e compatibilizar os que precisam usar o sistema de saúde e hospitais com a oferta de serviço. E isso é um grande desafio. Mas isso tem efeito enorme sobre a economia. Temos pessoas que não têm acesso à renda, temos empresas que não têm como vender e, o que é muito comum no Brasil, temos a desigualdade muito grande. Nós vemos pessoas vendendo coisas no sinal de trânsito, que estão nessa sobrevivência precária.
Como atuar em uma situação como esta?
A solução para essa situação de emergência durante o processo de transição será o Estado, o governo aumentar o seu déficit, com consequente aumento da dívida, para criar uma rede de proteção construída por dois pilares. Primeiro transferindo renda para os que não têm, como se fizesse um Bolsa Família o mais amplo possível, porque existem pessoas que não são sequer identificadas, não têm identidade, endereço, não tem nada, e essas pessoas tem que sobreviver. Tem pessoas que reclamam que não tem acesso, que tem dificuldades. Tem erros? Tem. O William Bonner mesmo disse que usaram o CPF do filho dele para pedir a Bolsa e a pessoa conseguiu. Isso faz parte do processo de garantir renda para essas pessoas, como também para os negócios. Também é preciso dar crédito para os pequenos negócios no setor formal, para as pequenas empresas. O BDMG está ampliando a capacidade de financiamento. Mas é recurso público e com isso está aumentando o déficit público e como consequência a dívida pública. E isso será feito em um horizonte até o final do ano. O governo começou com 90 dias a ajuda e provavelmente vai prorrogar, porque em três meses isso não estará resolvido.
E depois?
É um grande nó que temos, porque é uma situação muito difícil e complexa. Nesse período nós estamos aumentando a nossa dívida pública. A dívida está sendo aumentada e tem efeito sobre a avaliação, porque não somos uma economia fechada. A nossa economia está inserida no mundo, não somos uma economia fechada e que depende de capital para investimento. A retomada não pode ser feita com recurso público, não há a menor possibilidade de fazer isso, como se fazia nos anos de 1950. Essa retomada será feita com capital privado. A participação do capital privado depende da confiança que as pessoas terão na economia. A retomada da economia, que eventualmente pode até ser mais robusta, porque estará voltando de uma situação de paralisação, isso não é sustentável, porque a economia brasileira tem uma capacidade de crescimento muito baixa e há necessidade de melhorar a produtividade em médio prazo.
A ajuda até agora será suficiente?
A questão que hoje está colocada e que é extremamente complexa, é se haverá a necessidade de um programa de proteção para uma parte da população, para as pessoas que perderam seus negócios e esse é um passivo social que terá que ser encarado. Seria como o projeto de Eduardo Suplicy, de renda mínima universal para proteger essas pessoas. Essa é uma discussão que será colocada e será discutida no momento oportuno, mas ela estará na agenda, não tem como fugir disso. É extremamente complicado pois nesse mundo globalizado, a produção industrial depende das cadeias de suprimento. A fábrica de automóveis depende de equipamentos da Argentina. Outro exemplo mais concreto é que nós produzimos minério que é transformado em aço na China, tem o nosso café que sai daqui para ser industrializado na Alemanha Da mesma forma temos o nosso caso, se nós formos olhar a fragilidade do nosso sistema de saúde, porque coisas simples como essa máscara de proteção é produzida na China. Deverá haver uma pressão para se ter um novo esforço na indústria para evitar essa dependência, em um mundo que provavelmente será bem mais difícil, porque possivelmente esse regionalismo nacionalista, que já vinha, há algum tempo, sendo fortalecido, principalmente devido ao movimento migratório na Europa, com os países elegendo governo mais nacionalistas, será revigorado e isto terá um efeito negativo sobre as agências e os organismos multilaterais. Isso afeta a capacidade de negociação e a articulação entre os países. Estou dizendo isso para mostrar que o futuro é incerto. Teremos que ver como as coisas irão se reorganizar. É uma ilusão achar que o Brasil vai encontrar uma solução independente do resto do mundo. Esse é um problema global e as soluções serão também globais. O que acontecer lá vai acontecer aqui.
O país terá condições de voltar ao normal?
Chamo atenção para a democracia, que vem sendo corroída. Temo que talvez não tenhamos um novo normal. Esse é um quebra cabeça muito difícil e se o Brasil entrar em um processo de endividamento público, sem condições de um horizonte de solução, possivelmente irá aumentar o seu risco externo, o que é muito ruim para a economia. Se não construirmos um arcabouço de política monetária e fiscal extremamente consistente, sólido, vamos voltar a estaca zero. Nós sabemos muito pouco para prevermos o futuro. Temos um mar de incertezas pela frente.