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Aventuras jurídicas travam o andamento do Judiciário

Paulo César de Oliveira
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Primeiro foi a Constituição de 1988. Depois o Código do Consumidor. A partir deles o brasileiro começou a demandar mais o Judiciário em busca de direitos. Para alguns mais eufóricos, era o brasileiro tomando consciência da cidadania. Os tempos agora são outros e o Judiciário está ainda mais abarrotado, nem tanto por brasileiros em busca de direitos, mas de cidadãos tentando obter vantagens ilícitas, estimulados por quem também vai se beneficiar. A juíza Mônica Silveira Vieira, da 4ª Vara Cível de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, sente diretamente os efeitos desta prática e propõe a adoção de ações que impeçam o que chama de “litígio criado”, que acaba prejudicando o andamento de ações dos que, efetivamente, buscam a proteção de algum direito violado.

 

A sociedade brasileira queixa-se da demora do Judiciário em atender suas demandas. Por outro lado, os juízes estão com acúmulo de trabalho, ocupados em analisar ações que nem deveriam ter sido acolhidas?

Na verdade, o que acontece é que os juízes que atuam nas Varas Cíveis, especialmente os da área do Direito Privado, que julgam demandas envolvendo relações privadas, e não envolvem poderes públicos, têm verificado um grande número de demandas, que informalmente, chamam-se de fabricadas, ou de litígio criado, ou seja, a pessoa, na verdade, não enfrenta uma situação verdadeira de direito violado, não há uma situação em que ela sofreu uma injustiça, uma violação de direito para trazer à apreciação do Judiciário. Fabrica-se uma demanda, assume-se um risco, pois se pode perder, mas talvez se ganhe algo. Na hipótese de ganhar, há ganhos para outros envolvidos na demanda. Isso gera um demandismo e um congestionamento absurdo na Justiça Cível. A média de distribuição de feitos nas cinco Varas Cíveis de Contagem, por exemplo, até abril deste ano, era de cerca de 240 processos/mês. Em maio e junho subiu para 300, 310 por Vara. Analisando essa distribuição, esse aumento de cerca de 60 ações, que representa 25% a mais de distribuição mensal, verificamos que se trata apenas de demandas criadas, petições-modelo, tratando casos de todas as pessoas como se fossem idênticos, em formato de quase um formulário, que claramente revelam uma aventura jurídica. Quando temos um volume tão grande de aventuras jurídicas, demandas fabricadas para enfrentar, nós acabamos não conseguindo dar uma resposta rápida para aquelas demandas que veiculam problemas que realmente existem, que vinculam relatos de direitos violados.

 

Seria o famoso jeitinho brasileiro de querer levar vantagem em tudo, até nas questões jurídicas?

Não diria que é um jeitinho. Diria que este é um degrau superior de ilicitude. É abuso de direito processual. A Constituição da República permite um acesso à Justiça bastante amplo, mas esse acesso se destina a proteger os direitos realmente violados, que a nossa legislação garante. Há um ilícito. O que costumamos chamar de jeitinho estaria mais no campo do que no Direito Civil, chamamos dolus bonus, quer dizer, “enfeitar uma situação”, mas não se chega a incorrer em uma mentira. O que nós temos verificado é fabricação de fatos mesmo, falseamento de fatos para trazer à Justiça, demandas que na realidade não veiculam litígios reais. É a criação de litígios em uma tentativa de obter um ganho ilícito.

 

Essas pessoas podem ser punidas pela Justiça?

Essas pessoas podem ser punidas, sim. A punição que a legislação processual prevê é a aplicação de multa, que chamamos de multa por litigância de má fé. O que se verifica é que essa punição não tem sido suficiente para coibir esse tipo de prática. O que parece haver hoje é a necessidade de todos os órgãos e entidades que compõe o sistema brasileiro de Justiça – estou falando de Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público e OAB – unirem-se, unirem os seus esforços para coibir essas práticas. Parece-me que em Minas Gerais esses esforços começam a ser feitos. A OAB parece ter interesse em resolver essa questão, o Tribunal de Justiça mostra empenho também nesse sentido, e acredito que a Defensoria Pública e o Ministério Público certamente se engajarão. É preciso que a OAB processe e penalize esses advogados, porque, quando adotam essas práticas, eles não estão apenas praticando uma ilicitude, mas estão atingindo e impedindo uma tramitação rápida para as pessoas que não abusam do direito de ação. O Tribunal de Justiça começa a mudar seus entendimentos, para adotar posicionamentos que dificultam e até impedem que essas aventuras jurídicas cheguem a tramitar e que tenham alguma possibilidade de sucesso. O Ministério Público pode tomar medidas criminais, e a Defensoria Pública pode agir para ajudar pessoas carentes que se sintam lesados pelos profissionais que ajuízam esses litígios artificiais. Há casos inclusive em que os autores da ação negam a outorga de procuração, ou apontam que outorgaram mandato com finalidade diversa. Essas questões todas precisam ser tratadas pelo sistema inteiro de Justiça. O Judiciário sozinho dificilmente vai conseguir coibir essa prática.

 

Alguns casos que não deveriam ter tanta atenção acabam chegando ao Superior Tribunal de Justiça, como no caso do roubo de uma barra de chocolate. Como uma ação como essa chega ao STJ?

No âmbito criminal, nós temos uma situação um pouco diferente. As ações criadas se verificam no âmbito cível, em que as pessoas buscam reparações ou resguardo de interesses geralmente com expressão econômica. Nesse caso se consegue falsear a realidade e fabricar demandas. No âmbito criminal, nós não temos essa inflação de demandas provocadas pelos interessados, evidentemente; o aumento de litigiosidade, nessa área, decorre do aumento das ocorrências criminais, em decorrência de vários fatores, entre elas a situação econômica, a piora da crise. Em relação a esse caso específico, de delitos insignificantes que chegam ao Superior Tribunal de Justiça, na verdade existe a possibilidade de os próprios juízes rejeitarem eventual denúncia, ou absolverem o acusado, e é o que acontece, em regra. Os próprios promotores, a maioria deles, sequer oferece denúncia nos casos de valores tão inexpressivos envolvidos, porque há um entendimento majoritário na jurisprudência de que, nesses casos insignificantes, na realidade não houve sequer uma violação relevante ao bem jurídico protegido pela legislação penal. Se o promotor chegar a denunciar, a tendência do juiz é não aceitar. O caso relatado, que teria chegado ao STJ, chama a atenção pela insignificância, mas isso tem sido muito raro. Diferentemente do que acontece no âmbito cível, em que essa explosão de litigiosidade tem se intensificado, esses casos pouco significativos no âmbito criminal cada vez menos são processados. É claro que precisamos atentar para as especificidades desses casos criminais, porque às vezes pensamos só no valor do objeto subtraído, mas pode se tratar de um autor de fato que já praticou centenas ou dezenas de furtos pequenos, mas que geram uma perturbação da tranquilidade, do sossego, da ordem em uma comunidade, principalmente se se tratar de uma comunidade pobre, uma comunidade pequena, fechada. Em determinadas circunstâncias, ainda que o valor do objeto furtado seja pequeno, justifica-se a persecução penal pela reiteração de condutas e pela gravidade da perturbação causada e pela conduta daquele agente que opta por viver à margem da lei.

 

Com tantos processos para serem analisados, como separar os que merecem atenção dos casos pequenos?

Na verdade, os juízes têm condição de fazer isso analisando as especificidades das demandas, porque, ao se analisarem os casos, facilmente se percebe se é uma demanda de massa, um caso de demandismo, de litígio fabricado, ou uma ação que demanda exame mais individualizado. Por exemplo, houve várias ações cobrando expurgos inflacionários em relação às contas de poupança. Eram ações de massa, ações idênticas, mas as pessoas, em tese, tiveram os seus direitos violados, o que justificava o processamento das ações. Elas podem ser tratadas de uma forma massificada, diferente daquelas demandas complexas em que se discutem casos muito particulares, e isso permite atuar com maior agilidade. O que poderia permitir um tratamento mais eficaz, uma separação de caos mais eficaz, seria a criação de varas especializadas para resolver esses litígios de massa. Se há um litígio de massa, com fundamento em um direito violado na realidade, esse litígio deve realmente tramitar, deve receber uma resposta, a qual deve ser o mais ágil possível. Diferentemente daquele litígio fabricado, que tem que encontrar óbice até para a sua tramitação. O Judiciário precisa repensar a sua postura diante desses litígios e a OAB precisa repensar a sua postura diante dos profissionais que adotam essa prática. É preciso haver punição por parte da OAB e alteração do entendimento dos tribunais, especialmente trabalhando com a categoria do abuso de direito. Passar a analisar cuidadosamente essas demandas fabricadas para que, em todos os casos em que se verificar abuso processual, não apenas sejam aplicadas as penalidades cabíveis, mas que sejam tomadas decisões que resultem na extinção desses processos logo no seu início, para que não se permita que o Judiciário seja usado para essas práticas indevidas, para essas práticas aventureiras de perseguição de um ganho indevido, pois na verdade não houve um direito violado que justifique o acionamento do sistema de justiça.

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