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A morte, companheira de toda vida que insistimos desconhecer

A morte do ator Domingos Montagner causou uma enorme comoção no país. O palhaço de circo que virou o ator principal da novela das nove, despertou nos fãs de novela e nos que nunca tinham assistido a um só capítulo do Velho Chico, a sensação de que basta um segundo para tudo terminar. A dificuldade das pessoas em lidar com a morte fica evidente em momentos como este, segundo a psicóloga e presidente da Rede Apoio a Perdas Irreparáveis, Gláucia Rezende Tavares (foto).

 

Assistindo a toda essa comoção com a morte do ator Domingos Montagner fica a indagação de como lidar com a perda?

A primeira coisa é esta, nós estabelecemos uma lógica imaginária de que isto não existe. Nós vivemos, fazemos projetos, fazemos planos, com muita falta de cerimônia, sem considerar que eles podem ser interrompidos a qualquer momento. Existe um ingrediente na vida, que se chama mistério. De modo geral, a nossa tendência humana é a de não considerar a morte. Tendemos a nos iludir, com certeza. Gostamos não só da certeza, como da certeza absoluta. Isso é uma grande atração para ficarmos fora da vida e quando acontece, nos pega a todos desprevenidos. O que é curioso é que existe uma única certeza e nós fazemos de conta que ela não existe. Enquanto nós não admitirmos que existem limites, que existe esse conflito entre sonhar e não termos a garantia dele se realizar. É nesse intervalo que nós podemos estabelecer a nossa maturidade. O fato de definir limites quer dizer que eu não vou sonhar? Não. Você pode sonhar. Mas tem garantia de realizar? Não. É nessa conexão entre a capacidade de sonhar e a constatação que a realização é uma possibilidade e não é a única, é nesse intervalo que lidamos com as perdas. Ao lado disso, são perdas que continuamente nos dão a chance para aprender a curtir, a agradecer as conquistas realizadas. Isso porque nós achamos que as conquistas e os planos realizados são tão banais, são tão óbvios que quando eles acontecem nós não valorizamos, não os qualificamos.

 

Culturalmente as pessoas não estão preparadas para a morte?

Não. Não estão. Do ponto de vista cultural nós simplesmente desconsideramos essa possibilidade e atribuímos a esse tema a conotação de mórbido. As pessoas dizem “não vamos falar disso, porque atrai coisa ruim”. Com isso nós perdemos a oportunidade de ter mais qualidade de vida, porque a gente constrói esse imaginário de que é para sempre, então eu posso desperdiçar, posso jogar conversa fora, posso matar o tempo, porque a vida não é um bem durável, é infinito e na verdade não é. O grande desafio para nós todos, é que reconhecendo que temos limites, que tem perda e que a morte é inevitável, é grande a oportunidade para nós qualificarmos o tempo em que nós estamos. Curiosamente, as pessoas que tem mais aversão à ideia da morte, são pessoas que vivem muito mal. Negam presença na vida.

 

Temos que aprender a lidar com a morte para vivermos melhor, é isso?

Na verdade, as pessoas podem aprender a lidar melhor com a vida para reconhecer que na vida tem morte. Nós lidamos mal com o nosso tempo, com as nossas escolhas. De modo geral nós damos pouca atenção e cuidado à vida. Não quer perde-la, mas também não cuida.

 

Talvez por isso as pessoas tenham tanta atração pela vida alheia? É mais fácil olhar o que o outro está fazendo?

Em tese nós não nos vemos. Nós vemos o nosso reflexo no espelho, mas você não consegue se ver e temos esse olhar, que é muito cultural, muito social para fora, para a aparência, para a fofoca. Nós desenvolvemos muito essa habilidade externa e damos pouca atenção à reflexão, para sentir intimamente. Não somos solicitados ou desenvolvidos nessa habilidade e isso envolve trabalho e muitas vezes vamos conhecer isso em processo psicoterápico.

 

Quem assiste a morte do outro, como foi o caso da atriz Camila Pitanga é um processo traumático e difícil de assimilar?

Na questão, eu acho que envolve muito o limite dela própria querer ter oferecido ajuda e não ter conseguido. É claro que isso dói muito e será tão traumático quanto mais ela se sentir culpada exclusiva dessa história. “Eu que fui aí a total responsável por essa morte”. Quanto mais nós adotamos posições nas relações com as pessoas, achando que nós ocupamos mais do que 50%, nós vamos ficar sobrecarregados. Tem uma parte dela? Tem. Mas tem uma parte que não é dela. E estamos trabalhando sim, em mistério. A outra questão é que era algo desejável? Era isso que ela queria? Ao lado de, evidentemente, não ser o que ela queria, a vida também nos frustra. O desafio é entender que por mais que nós queiramos nos mostrar disponíveis e sermos solidários ao outro, também temos limites. Nós não conseguimos controlar e evitar aquilo que está. Essa é uma grande dor, a de admitir que nós temos limites e que muitas vezes nós confundimos limite com essa impotência. Tão mais vamos nos sentir impotentes, quanto mais nos cobrarmos sermos onipotentes, por dar conta de tudo. E quem dá conta de tudo está na véspera de achar que se não conseguir não vai dar conta de nada.

 

Essa lógica vale também para as relações pessoais?

Na verdade, qualquer fenômeno humano nós vamos escrever e compreender do ponto de vista relacional. O que é um lado, o que é o outro lado. Um lado que ajuda, que é solidário e que consegue e se sente satisfeito em contribuir e tem o outro lado que fala que por mais que eu quisesse fazer, não foi possível. E nem por isso eu não valho nada e, nem porque em alguns momentos eu consegui fazer algum movimento, eu sou o máximo.

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